domingo, 8 de novembro de 2009

Glitter: A história de uma Drag-Queen


 A vida por trás da maquiagem


Um ateliê, tomado de vestidos cuidadosamente pendurados em cabides. Todos minuciosamente bordados e passados. Aguardo numa ante-sala e me deixo levar pelo encanto dos tecidos e pedras. Logo ao lado do espelho, um belo croqui, assinado por Charles Mathias. O vestido de noiva dos sonhos de qualquer garota estava lindamente representado naquele desenho. Meus pensamentos solitários foram subitamente interrompidos, por uma gentil voz que me chamava.
            Não muito alto, ele vestia uma pólo rosa da Lacoste, apesar desta não ser sua cor favorita.  Convidou-me para adentrar uma outra sala, onde pudéssemos conversar com mais privacidade. Mesmo assim, não pudemos evitar o constante entra-e-sai de costureiras, estilistas e funcionários do estabelecimento.     
            Carrega um sorriso no rosto, de quem constrói sonhos e conseguiu realizar os seus. A profissão escolhida foi descoberta ainda na infância. Fascinado por desfiles e modelos, aos 9 anos, tentava colocar no papel o que seus olhos viam. Aos 14 anos, fora contratado, como estilista, numa importante rede de lojas em sua cidade natal.
            Era o mais velho, entre oito primos. Conquistou o respeito, por ser o único a ter um emprego de verdade. Tentava esconder sua real função e apenas mencionava trabalhar numa loja de tecidos, afinal morava no Norte do Brasil, cheio de paradigmas. Sua felicidade era tamanha, que pouco se importava com os possíveis comentários. O preconceito, ele diz nunca ter sentido. E mesmo que houvesse, não era algo que lhe importava. Faz-se perceber que ele não é do tipo que se aproveita da maldade das pessoas para desenvolver uma figura deprimida; sua principal ferramenta é a alegria.
            Após um ano bem sucedido no emprego, recebeu uma proposta irrecusável. Mudar-se imediatamente para São Paulo, onde seria figurinista da Rede Record de Televisão. Lembrou como há 15 anos, deixou a querida mãe no Rio Grande do Norte, em busca de sua auto-afirmação profissional.  Meteórica, é a melhor definição para a sua mudança. 

De um dia para o outro, estava na enorme metrópole. Morava com uns amigos na Consolação e todo o dia locomovia-se até o bairro de Moema, próximo ao shopping Ibirapuera, onde era a sede da televisão. Fazia os figurinos do jornalismo e também da apresentadora Silvinha, que na época, comandava um programa infantil.
            O telefone não parava de tocar. Pediu licença e foi atendê-lo. O ateliê estava movimentado naquele dia. Padrinhos, madrinhas, noivos e noivas retirando seus figurinos. Enquanto aguardava, fui ver de perto os vestidos que estavam à mostra. Me permiti entrar na vitrine para tocar e observar as pedras bordadas naquele vestido de noiva em exposição.
            Para entender os meios, é necessário voltar ao início. Muitas vezes, durante nosso encontro, quebramos o protocolo da linearidade para explicar certos acontecimentos. Assim que retornou à sala em que eu o aguardava, perguntei sobre sua técnica. Contou-me, que nunca havia feito cursos para aperfeiçoar seus traços. Veio de uma família pobre e só foi treinado quando já estava há três ou quatro anos na profissão. Ria enquanto descrevia sua paixão pelo desenho; das tantas vezes que deixou a lição da escola de lado para pintar numa tela.  Não por coincidência, nas tentativas de retratar paisagens, sempre acabava complementando com uma figura feminina bem vestida.
            Do início de sua vida, destacou que não conhece o pai. Foi fruto de um amor intenso e avassalador, mas sua mãe fora abandonada ao descobrir a gravidez. Mãe solteira foi colocada pra fora de casa, já que era algo inadmissível para os moldes do conservador estado do Rio Grande do Norte. Deu a luz e nos primeiros meses de nascimento, viveram num canavial, até que uma tia acolheu mãe e recém-nascido em segredo. Sabeem São Paulo e mesmo após 15 anos morando na Capital não foi procurá-lo, pois não há vínculo, muito menos interesse.  que o pai vive
             Das suas inspirações, Ocimar Versolato é o seu favorito. Justificou a escolha através da indagação: “Qual é a graça daqueles vestidos ‘over’, com a máxima da moda, se você não pode usar na rua?”.
            Agora é a campainha. Nós a ouvimos tocar duas vezes, até que decidimos fazer outra pausa para abrir a porta. A agitação e o calor naquela tarde eram equivalentes. Aproveitei a nova pausa para reabastecer os líquidos do corpo e tomei um copo de água.
            Confeccionar um vestido de noiva requer muito empenho. Os detalhes, os bordados, a fragilidade das pedrarias. O mais importante é satisfazer o desejo da noiva. O casamento ainda é um acontecimento importante e especial, mesmo que estejamos na era dos divórcios. Em suas palavras, o primeiro casamento é sempre marcante, mesmo que venham outros dezenove.
            Em primeiro lugar, vem o desenho. Ela descreve como o imagina e as idéias começam a fluir na mente do estilista. Ele me explica que o croqui é uma base importante para a confecção, mas sempre espere mais. Se no desenho constam 500 gramas em pedras, no vestido, colocará 600 ou até 700 gramas. Quanto mais brilho, mais elas gostam. 


            Noivas neuróticas, um capítulo à parte. Uma moça, de nome Desireé, elogiou muito o vestido na primeira prova. Nem estava pronto ainda, como ele disse, era só a carcaça. Mesmo assim foi venerado pela noiva. Na última prova, antes da retirada, veio uma crise. Pediu para refazê-lo, mudar os bordados e tudo que ela tinha afirmado gostar desde o primeiro momento. Não havia tempo hábil para tal, então, fez alguns ajustes nos bordados. Após alguns dias, ela telefonou e pediu desculpas. Havia transferido os problemas e discussões com a família para o vestido. Por isso, destacou, que estilista também é psicólogo; tem que saber lidar com tantas pessoas e cabeças diferentes.

Sem rodeios, resolvi então fazer a pergunta. Respirei fundo, soltei o ar com lentidão, tomei uma dose de coragem e disparei: “Cher ou Madonna?” Aquele mesmo sorriso sereno, me respondeu sem pensar: “Ah, Madonna, com certeza!”.
            A transformação ocorre aos finais de semana, à noite. Não é necessário olhar para a lua cheia ou injetar qualquer líquido transformador. Um bom motivo para tal, é uma celebração, de qualquer espécie.  Onde há pop, glamour e alegria é lugar para Charlene Blue. Charlene, por uma questão de variação feminina de seu nome, Charles. Blue, porque é a denominação na língua inglesa de sua cor predileta. 

Ainda quando morava em Natal, descobriu a sua vocação para ser Drag-Queen. Entre os amigos, sempre foi o mais engraçado e divertido da turma. Pois então, resolveu ganhar dinheiro com sua personalidade excêntrica. Produzia vestidos coloridos, cheios de babados e cores. Maquiagem e cabelo também são de sua total responsabilidade. Sua transformação leva uma hora e meia para ser completa.
            Começou a se apresentar em boates gays para complementar a sua renda. O velho clichê, do útil mais o agradável aplica-se com exatidão. Ensaiava músicas, de preferência do gênero pop, e fazia suas dublagens nos clubes noturnos.  
            Assim que mudou-se para São Paulo, sua carreira como transformista cresceu na mesma proporção que suas criações de moda. Frequenta a parada do orgulho gay desde seu início, quando ainda havia um pano de fundo político. A parada, para ele, é uma grande celebração e obrigatório em sua agenda anual.
            Resolveu trabalhar para o público heterossexual, já que em sua opinião, é quem realmente valoriza o trabalho das Drag-Queens. Isso sem dizer, que num evento hétero, ele é o único gay com paetês pelo corpo. Ou seja, o centro das atenções.
            Faz todos os tipos de evento, desde casamentos, despedidas de solteiro até festas de debutantes. Quando a Charlene entra em cena, há todo um cuidado para não chocar nem desrespeitar ninguém. Até hoje, não registrou nenhum incidente em seus shows. Os convidados adoram sua performance e sempre acabam pedindo para tirar fotos. 
            Quem o vê manipulando tecidos e em ação no ateliê, não imagina sua vida à noite. A Charlene é parte integrante do Charles, porém neste específico caso, podem ser vendidos separadamente.
            De repente, tudo fica nu, sem disfarces. Ao terminar o show de entretenimento, à medida que a peruca, a maquiagem e os cílios postiços são retirados, a alma fica vulnerável. A falecida mãe ainda é um tabu a ser enfrentado. Seu refúgio era aquela pessoa, que sempre esteve lá quando chegava a hora de voltar para casa. Encheu os olhos de água, enquanto descrevia a saudade; que é como se ela ainda estivesse lá e que não sabe como reagirá ao retornar e não vê-la presente no Natal.
            Por debaixo do chiffon, paetês e muita seda há um talentoso estilista que não chegou onde está por acaso. Por trás dos longos cílios, há uma Drag-Queen cheia de alegria e estilo. Entre Charles e Charlene Blue, definitivamente há uma mulher, carinhosamente chamada de mãe.


Contato: Charles Mathias
Charlene Blue
charlenedrag@hotmail.com